Orbis Tertius, vol. XXVIII, nº 38, e278, noviembre 2023-abril 2024. ISSN 1851-7811
Universidad Nacional de La Plata
Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación
Centro de Estudios de Teoría y Crítica Literaria

Artículos

Ponto de partida, ponto de encontro: El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain

Danielle Magalhães
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Cita recomendada: Magalhães, D. (2023). Ponto de partida, ponto de encontro: El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain. Orbis Tertius, 28(38), e278. https://doi.org/10.24215/18517811e278

Resumo: Este ensaio pretende trazer modos de ler El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain, compreendendo o livro como um duplo eco e percorrendo suas ressonâncias e dissonâncias ao buscar o que se desloca da escuta para a escrita: por exemplo, como essa escrita traz marcas do ritmo de um trauma inscrito no corpo que ressoa o que foi emudecido na língua materna? O deslocamento, portanto, vai se configurando como operador das chaves de leitura: da ontologia (“ser”) para a convivialidade (“estar-com”), da estabilização do referente para uma posição cambiante do sujeito e do lugar enunciativos, do ponto de desarticulação da língua para uma ponte de encontro entre vivos e mortos, do ponto de desarticulação da prosa para o ponto de partida do verso, da fixidez do ponto final para a suspensão do ponto como um ponto de partida de um romance. Esses e outros deslocamentos vão se tecendo a partir de operações de corte e alinhavo do que se transmite ou não de uma língua, inventando outra que seja, a um só tempo, um idioma para falar tanto com mortos como com bebês.

Palavras-chave: Tamara Kamenszain, Poesia, Luto.

Punto de partida, punto de encuentro: El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain

Resumen: Este ensayo pretende traer modos de lectura de El eco de mi madre, de Tamara Kamenszain, entendiendo el libro como un doble eco y recorriendo sus resonancias y disonancias al buscar lo que se desplaza de la escucha para la escritura, por ejemplo, ¿cómo esa escritura deja marcas del ritmo de un trauma inscrito en el cuerpo que resuena o fue silenciado en la lengua materna? El desplazamiento, por tanto, se configura como operador de claves de lectura: de la ontología (“ser”) a la convivencia (“estar-con”), de la estabilización del referente a un cambio de posición del sujeto y del lugar enunciativo, del punto de la desarticulación de la lengua a un puente entre los vivos y los muertos, del punto de desarticulación de la prosa al punto de partida del verso, de la fijeza del punto final a la suspensión del punto como punto de partida de una novela. Estos y otros desplazamientos se tejen a partir de operaciones de cortar y coser lo que se transmite o no de una lengua, inventando otra que es, a la vez, una lengua para hablar tanto con los muertos como con los bebés.

Palabras clave: Tamara Kamenszain, Poesía, Duelo.

Suspension point, meeting point: El eco de mi madre, by Tamara Kamenszain

Abstract: This essay intends to bring ways of reading El eco de mi madre, by Tamara Kamenszain, understanding the book as a double echo and going through its resonances and dissonances when looking for what moves from listening to writing: for example, how this writing brings marks of the rhythm of a trauma inscribed in the body that resounds what was muted in the mother tongue? Displacement, therefore, takes shape as an operator of reading keys: from ontology (“being”) to conviviality (“being-with”), from the stabilization of the referent to a changing position of the subject and the enunciative place, from the point from the disarticulation of language to a bridge between the living and the dead, from the point of disarticulation of prose to the starting point of verse, from the fixity of the end point to the suspension of the point as a starting point of a novel. These and other displacements are woven from operations of cutting and sewing what is or is not transmitted from a language, inventing another one that is, at the same time, a language to speak both with the dead and with babies.

Keywords: Tamara Kamenszain, Poetry, Mourning.

“Mamá mamá mamá/ grito en un ataque de ecolalia/ [...]/ yoy y vengo dos veces de la eme a la a de la eme a la a” são versos de Tamara Kamenszain em El eco de mi madre (2012 [2011], p. 102). Em Além do princípio do prazer, Freud discorreu sobre o jogo do Fort/Da como um modo de a criança lidar com a ausência da mãe a partir de uma brincadeira que ele denominou de “jogar ‘ir embora’”:

[...] ele [o menino] proferia, com expressão de interesse e satisfação, um forte e prolongado o---o---o---o, que, no julgamento da mãe e no deste observador, não era uma interjeição e significava “fort” [“foi embora”]. Afinal percebi que era um jogo e que o menino apenas usava todos os seus brinquedos para jogar “ir embora”. [...] Com habilidade lançava o carretel, seguro pelo cordão, para dentro do berço, através de seu cortinado, de modo que ele desaparecia, nisso falando o significativo o---o---o---o, e depois o puxava novamente para fora do berço, saudando o aparecimento dele com um alegre “da” [“está aqui”] (Freud, 2010 [1920], p. 128).

Com isso, Freud anunciava que o nosso modo mais primário de se mover com a ausência é um jogo que separa (fort, “foi embora”) ao mesmo tempo que une (da, “está aqui”), como a brincadeira de desaparecimento e reaparição encenada no gesto de jogar o carretel que se oculta, desaparecendo por um instante da vista, até voltar a aparecer. Em El eco de mi madre é possível escutar o eco desse “forte e prolongado o---o---o---o” nesse jogo de “ir embora” que ensaia a separação. Nesse vai-e-vem, o eco também recai fortemente na satisfação da reaparição que se incide no “da” (“está aqui”), passível de ser escutada na extensão da letra “a” presente na sílaba forte de “mamá” que ecoa em “a la a” no verso “yoy y vengo dos veces de la eme a la a de la eme a la a” (Kamenszain, 2012, p. 102).1 Nesse livro, jogar “ir embora” se faz a partir de outros ecos que funcionam como ponto de partida. Nele retumbam as reticências de César Vallejo que, fazendo eco ao eco da mãe, rematam o não-saber enquanto, a um só tempo, arrematam-no em escrita, fazendo borda ao não-saber: “Hay golpes en la vida tan fuertes/ que me demoro en el verso de Vallejo/ para dejar dicho de entrada/ lo que sin duda el eco de mi madre/ rematará entre puntos suspensivos: yo no sé... yo no sé... yo no sé” (p. 74).

El eco de mi madre é dividido em três partes. A primeira é antecedida por um verso de Vallejo como epígrafe: “Hay golpes en la vida tan fuertes... Yo no sé” (Kamenszain, 2012, p. 70). Essa parte anuncia a iminência da morte da mãe. A segunda parte é antecedida pela epígrafe de Olga Orozco e nela há um eco de uma pomba que faz ressoar O Corvo de Edgar Allan Poe. Escutamos o tempo do “nunca mais” (nevermore) no lamento da pomba que diz: “¡Ya se fue! ¡Ya se fue!” (2012, p. 98). Nessa parte, a mãe já está morta. Como narrar o que já foi, como quem diz “Había una vez...”, se o pretérito já não tece a memória que se detém “ante un estado de cosas demasiado presente” (p. 76)? Parece que a mãe, enquanto ainda tecia a filha, era a guardiã de um arquivo, mas uma vez que a mãe perdeu a memória e deixou de tecer a filha, é a filha que se arquivou no “desierto público” da desmemória da mãe (p. 79), e aquela que até então tinha sido tudo – “ahora sos todo que nos queda ahora sos todo” (p.112) –, torna-se ainda menos “eu” – “[...] me había vuelto/ aún menos yo para ella” (p. 92). “No puedo narrar./ .Qué pretérito me serviría/ si mi madre ya no me teje más?/ [...]/ y la gramática se torna un escándalo/ cuando ella que olvidó las palabras/ adelanta su bebé furioso/ con el fin de decirlo todo/ aunque no se entienda nada” (p. 76). Mas a mãe era a guardiã de que memória, de que arquivo?

O terceiro tempo do livro se dá depois da morte da mãe. Essa terceira parte é a única que possui um título, “El libro cortado”, seguido da inscrição “In memoriam/ Oscar Bernardo Kamenszain/ (1950-1953)” (p. 108). Alguns versos dessa parte dizem: “era yo la hija sombra del varón en la cuenta regresiva/ él estaba entre nosotras un nombre de la lápida al living/ pedía hacerse decir pero estaba prohibido/ nunca más nunca más nunca más” (p. 114). Um livro é a sombra do outro, ou “El libro cortado” é um eco de El eco de mi madre. Pode-se dizer que a escrita de El eco, em seu duplo eco, é a invenção de um idioma para falar com a mãe e com o irmão, como se inventar “un idioma para hablar con los muertos” ( p. 100) fosse um modo de falar tanto com o bebê que sua mãe se tornara como com outro bebê, seu irmão. Aí, uma língua do luto e uma língua para falar com bebês (como a lalação da língua materna) aproximam-se irremediavelmente. Esse duplo se insere em uma desarticulação do tempo: entre o ainda não e o não mais. A mãe que, na primeira parte, ainda não havia morrido, e o irmão que não mais vivia. Aquela se tornara um bebê no tempo do tarde demais de sua vida, e aquele, que era um bebê, morrera no tempo do cedo demais. Ele, na infância da língua, infans, ainda não havia se tornado um ser falante. Ela, no alto de sua vida de ser falante, não mais correspondia à gramática, tornava-se infans. Essa desarticulação tem correspondência no próprio Alzheimer, cuja linguagem se desestabiliza ao se descolar dos referentes, como aponta Luciana di Leone:

A fala do Alzheimer, uma fala descolada dos referentes tradicionais, se aproxima formalmente da fala infantil, do balbucio repetitivo, e da forma poética. Ou, em outras palavras, o contato com o balbucio do Alzheimer, do balbucio in-fante, faz com que a língua forme corpos ou deforme os corpos que se tinha por estáveis, o da mãe e o da filha. Mãe e filha se deslocam, são deslocadas por um uso diferente – e nem sempre proposital – da linguagem. A mãe/criança tem uma linguagem que não tem e não sabe que sabe (Leone, 2018, p. 116).

Não estabelecer lugares fixos de identidade sempre foi uma característica da obra de Kamenszain, que, ao trazer como problemática recorrente a questão da herança, do nome, do que é matéria de transmissão, recria genealogias e refaz linhagens e laços. Nesse caso, um dos deslocamentos produzidos pelo descolamento dos referentes não é só a posição da mãe que, tornada bebê, retrocedendo no tempo, se torna filha da filha, ou avó – como diz o verso, pela boca da enfermeira, “‘se fue la abuela’” (Kamensazin, 2012, p. 94) – e a filha, por conseguinte, se torna mãe da mãe, ou neta, mas também, como será visto, a desestabilização do referente provocará um deslocamento da pergunta “Quem sou?” para a afirmação “aqui estou” ou “estou aqui”, que, porém, também não terá o referente estabilizado, uma vez que o dêitico se intercambiará, não fixando nem o sujeito nem o lugar da enunciação. Não obstante a multiplicidade de leitura que se abre dessa desestabilização do referente, isso também ecoa uma questão importante para Kamenszain, que foi o assombro dos fantasmas do formalismo ao longo de grande parte de sua obra, em que o “eu” nunca podia coincidir com a autora, ao passo que em El eco de mi madre, o uso do pronome possessivo indicaria uma coincidência do sujeito narrativo com a pessoa que escreve:

[...] tuve que aceptar, despojándome de viejos pudores formalistas, que a su vez esa que llamé “la sujeta” no era otra que, literalmente, yo misma. Una yo que en El Ghetto (2003) definí como “yo es otra”, feminizando la premisa de Rimbaud, pero que en El eco de mi madre ya revela – desde el título mismo donde el posesivo antecede a la madre – una necesidad de afirmarse más allá de los avatares de la enunciación, como esa sujeta “que soy” (“no reprimir el sujeto que soy”) (Kamenszain, 2016, s/p).

“Não reprimir o sujeito que sou” é uma frase de Roland Barthes em A preparação do romance, quem, curiosamente, escreveu A morte do autor. De todo modo, “a sujeita que sou”, em Kamenszain, mesmo coincidindo com a autora, está a todo momento mudando de posição, não se fixando. O deslocamento do “quem sou” para o “aqui estou” já indica essa movência que não enrijece “a sujeita” no “ser” do “quem sou”. Esse deslocamento do “ser” para o “estar” rasura a ontologia e a fixidez da essência por uma mobilidade, o que retoma a despretensão do jogo do Fort/Da que lida com a ausência, não pelo o saber, não com perguntas e respostas, mas sim encenando a presença: “está aqui” (“da”). Na perda do referente que embaralha as posições e torna impossível saber quem é a mãe e quem é a filha, a mobilidade do “estar” parece ser a forma mais possível de conduzir a partida desse jogo de “ir embora”. Desse modo, não há como ensaiar a separação prescindindo de um “estar-com” que, no entanto, aparece relacionado a outras separações: estar com a mãe se configura também como ter estado com ela na morte outras vezes.

“Ya la acompañé a morir una vez” é o verso que se repete na terceira parte, retornando no começo das estrofes como uma ecolalia (Kamenszain, 2012, p. 112). Os outros versos que retornam como “golpes en la tumba” – ressoando Alejandra Pizarnik, uma das epígrafes dessa parte – são “porque la muerte al fondo de mi infancia/ había cortado el libro” (p. 112). Poderia ser dito que uma das coisas que a escritora argentina herda da mãe é o corte provocado por outra morte, a do irmão, durante sua infância: “y solté rápido mi mano de la mano de ella/ de la mano que mi madre había soltado de su hijo/ y me dispuse a empezar la tarea/ porque desde adentro al fondo de mi infancia/ la muerte había cortado un libro” (p. 112). Mas logo sabemos que a filha não soltou tão rápido assim a mão da mãe: “mamá me ama mamá me mima mamá mamá” era o que a filha escrevia no “cuaderno pálido de las letras cabizbajas” (p. 112). No verso “mamá me ama mamá me mima mamá mamá”, Kamenszain descongela a língua materna ao trazer à tona, indiretamente, a conhecida frase que era utilizada na cartilha antiga de alfabetização na Argentina: “mi mama me mima, mi mama me ama”. Isso mostra o jogo que ela faz com a questão da escrita, da preservação da memória e da língua materna, a partir dessa fórmula que as crianças precisavam memorizar no período em que estavam aprendendo a ler e a escrever. Nesse sentido, é como se a repetição “Ya la acompañé a morir una vez” fosse também um modo de produzir um corte na língua materna e de aprender a escrever outra língua, o idioma da separação. Se ler e escrever na língua materna começa pela mãe, pela palavra “mamá”, pelo movimento de ir e voltar do “m” ao “a” (“yoy y vengo dos veces de la eme a la a de la eme a la a”), inventar um idioma para fazer o luto da mãe se passa também por fazer uso do idioma inventado pela mãe que “congelou” a língua materna – “estas rehenes del Alzheimer/ ponen a congelar la lengua materna” (p. 92).

Se, por um lado, produzir um corte na língua materna é fazer um uso propositivo da desarticulação da mãe, por outro lado, a transmissão do corte, isto é, da morte, chegou à filha por uma língua congelada, por uma mãe que não narrou a morte do filho para a filha. Fixada à sombra do irmão, talvez a filha não pudesse narrar porque não houve uma transmissão da mãe que narrasse a morte do filho. Em “As línguas do luto”, ensaio de apresentação às traduções brasileiras de El Ghetto. El eco de mi madre, Adriana Kanzepolsky diz que esses dois livros buscam uma língua para falar com os mortos:

O eco da minha mãe encontra no recurso da repetição uma forma de descongelar a língua materna e inscrever a morte e a desmemória da mãe no presente do poema, ao passo que O Gueto alcança esse presente no cruzamento sempre dessacralizador entre o imaginário judaico – “a língua do pai” – com a cotidianidade da língua e o imaginário argentinos (Kanzepolsky, 2012, p. 13).

Se a narração, provinda do imaginário judaico, é atribuída à língua do pai, e a língua da mãe é puro eco sem transmissão, “sem-razão”, como diz Kanzepolsky (p. 13), inventar um idioma que possa ser uma língua materna, que não é aquela que se confunde com a da mãe, mas sim a que é a mais íntima, seria justamente aprender uma língua nova que não é a da mãe (nem a do pai), mas a do eco de outras vozes (como as de César Vallejo, Lucía Laragione, Coral Bracho, Sylvia Molloy, Diamela Eltit, Olga Orozco, José Asunción Silva, Alejandra Pizarnik) que, emergidas em uma rede de citação, operam não só como um “aprender a escrever”, mas também como um “falar-com”. Nesse sentido, alfabetizar-se se faz, antes, por um gesto de escuta que permite, ao “falar-com”, um “escrever junto”. Quebrar o gelo da língua materna supõe, portanto, um gesto de ruptura com o uno em prol de um “estar com” que se dá desde o fora, desde o outro. Assim, a língua materna, como aquela que seria a mais íntima, se faz por uma “intimidade” em que o “lo más íntimo habita fuera, como un cuerpo extraño”, como a própria escritora desenvolveu em Una intimidad inofensiva, a partir do termo “extimidade” pensado por Lacan (Kamenszain, 2016, s/p). Aprender a escrever ou alfabetizar-se desloca-se então do começo pelo nome “mamá” para outro começo que só acontece se se desprende da mãe. Quando a filha soltou a mão da mãe que, por sua vez, tinha soltado a mão de seu filho, ela disse: “me dispuse a empezar la tarea” (Kamenszain, 2012, p. 112). Que tarefa? Na próxima estrofe, os versos dizem: “cuando mi hermano murió/ quemaron las fotos rompieron los indicios/ no quedó nada solo yo solo yo sola” (p. 112). Mais à frente, lemos:



la muerte casera en mi casa erigió el eco de un tabú
éramos una burguesía oscura envuelta en gobelino
tapábamos con cortinas nuevas como diciendo NO PASARÁN
de la ventana para afuera un mundo impronunciable
nos acosaba y yo adentro haciendo en ghetto los deberes
la caligrafia muda de la h arrastaba un hermano
porque la muerte al fondo de mi infancia
había cortado el libro.
(Kamenszain, 2012, p. 114)

A mãe, colada ao real da morte do filho, sucumbe ao martelamento do “yo no sé…”:



yo no sé... yo no sé dijo ella de entrada cuando murió mi hermano
yo no sé... yo no sé la fue empujando hacia adelante el eco obstinado
punto por punto cada punto suspensivo soltaba un indicio más
¿las fotos? ¿la ropa? ¿los juguetes? ¿la partida de nacimiento?
nada por aquí nada por allá nada por aquí nada por allá.
Hasta que vino otra defunción y presentó su propia partida.
(Kamenszain, 2012, p. 114)

Empurrada por esse eco, o não-saber do real martelava essa morte, ponto por ponto, emperrando a simbolização do trabalho de luto. Uma família de judeus havia incendiado a memória. No eco da desmemória da mãe, o que ressoa também é o apagamento dessa memória. Começar a tarefa de nomear, como uma criança que aprende a ler e a escrever, se faz como um duplo e mesmo movimento de entrar na linguagem e de falar com aqueles que saíram dela, que estiveram aquém e além da linguagem. De alguma forma, a complexidade desse drama familiar traz a tragédia coletiva de uma cultura marcada pelo exílio e pelo apagamento das línguas e das memórias. A filha tomaria para si a tarefa: “murió mi hermano y yo empezaba a escribir era mi tarea”, mas o verso seguinte – “mamá me ama mamá me mima mamá mamá” (Kamenszain, 2012, p. 112) – revela que iria demorar um tempo até que a filha finalmente soltasse a mão da mãe para que pudesse começar a ensaiar outra caligrafia que não fosse muda como o eco de “mamá”.

A partir do verso “la caligrafia muda de la h arrastaba un hermano”, podemos escutar Daniel Heller-Roazen, em Ecolalias, quando diz que a letra ., fonema aspirado, mudo, por muito tempo passou sem nenhuma razão semântica, não passando de “um sopro necessitando de explicação”, “uma marca inútil da respiração”, devendo “ser chamada antes um espírito do que uma letra”, o espírito forte de toda letra, um sopro escrito, ou parafraseando Paul Celan, “o rastro que nossa respiração deixa na língua” (Heller-Roazen, 2010, pp. 29-39). De algum modo, no caso de El eco de mi madre, a escrita desse eco traz a inscrição de um trauma cuja marca faz escutar o que foi apagado, ou emudecido, na língua materna, de modo que não seja possível escutar uma língua materna que não seja pelo eco da marca do trauma. Talvez, “El libro cortado” tenha sido a invenção de uma caligrafia que produzisse outra forma de ler e de escrever que não prescindisse do eco desse trauma no corpo.

Na memória incinerada de Oscar, era também Tamara quem morria, colando-se ao irmão em uma lógica de substituição: “me habían circuncidado a mí por él” (Kamenszain, 2012, p. 112). Em Kamenszain, a condição de mulher e de judia comparece como uma dupla condição que potencializa a inscrição do trauma no corpo, não pelo ritual de circuncisão pelo qual passam os homens judeus, mas justamente por ser excluída desse e de outros rituais por ser mulher. El eco de mi madre se escreve sob o efeito da inscrição do corte que retumba no corpo, como sombra de outro corte em outro corpo, sendo El eco a sombra desse corte, a sombra de um livro que foi suprimido, “El libro cortado”:



cuando mi hermano murió
quemaron las fotos rompieron los indícios
no quedó nada solo yo solo yo sola
envuelta hija única en la ley del secreto
no digas nada no digas nada pedia la herrumbre de los ojos
“debajo estoy yo” sudaba al mismo tiempo un nombre en la lápida
me habían circuncidado a mí por él
(Kamenszain, 2012, p. 112).

No desencaixe entre o som e o sentido produzido no corte entre o penúltimo e o último versos, podemos escutar: “en la lápida, me habían circuncidado a mí por él”. Um sacrifício pelo outro em busca de alguma aliança. Mas, nesse segredo, não havia aliança, não havia laço, havia apenas fusão: “era yo la hija sombra del varón en la cuenta regresiva/ él estaba entre nosotras un nombre de la lápida al living/ pedía hacerse decir pero estaba prohibido/ nunca más nunca más nunca más” (2012, p. 115).

Nos versos “yo no sé... yo no sé dijo ella de entrada cuando murió mi hermano/ yo no sé... yo no sé la fue empujando hacia adelante el eco obstinado” (p. 114), o eco do não-saber retorna, porém, deslocando o sentido em cada ponto de reticência que se transforma em uma interrogação: “punto por punto cada punto suspensivo soltaba un indicio más/ ¿las fotos? ¿la ropa? ¿los juguetes? ¿la partida de nacimiento?”. Cada ponto esconde em si uma interrogação da qual emerge uma interpelação diante do que não se sabe, diante das perguntas sem reposta. A palavra “partida” trazida na interrogação “¿la partida de nacimiento?” retorna dois versos depois, em “Hasta que vino otra defunción y presentó su propia partida”. Nesse jogo da morte e da vida, o outro óbito é que vem certificar a morte e a possível sobrevida com o trabalho de luto do irmão:



y adentro del viejo cuaderno olvidado de la mano de mi padre
un papelito aparece sudando impreso el passo de los años
Tablón 998 Sepultura 36
como queriendo decir en verso:
Oscar Oscar
debajo estoy yo
Oscar
(p. 116)

Esses versos finais ecoam os versos de Alejandra Pizarnik que constituem o breve poema intitulado “Sólo un nombre”: “Alejandra / Alejandra / debajo estoy yo / Alejandra” (Kamenszain, 2016, s/p). Nesse procedimento de citar reescrevendo há um gesto que, de alguma forma, ressuscita Alejandra em Oscar e Oscar em Alejandra. Em Una intimidad inofensiva, Kamenszain recupera esses versos de Pizarnik quando discorre sobre o esvaziamento da carga solene do nome próprio, tornando inofensivo o íntimo que, todavia, é o mais êxtimo. Remetendo-se ao gesto de Cecília Pavón que se assemelha ao das crianças que começam a ler e se emocionam descobrindo as letras de seus nomes por todos os lados, Kamenszain contrapõe isso aos versos de Pizarnik: enquanto, no primeiro, o que está em jogo “es más un estar en el mundo que un ser en la literatura”, o segundo parece assinalar “un modo de estar el nombre propio dentro de la literatura y, más puntualmente, debajo, enterrado, muerto” (2016, s/p). O gesto de assinar o nome próprio marca um descolamento da transmissão de tradição patriarcal regida pelo Nome-do-Pai. Fazer emergir Oscar em Alejandra é um modo de ressuscitar a sujeita naquele que também não havia existido como sujeito.

Para Tamara, o que define escritores da “intimidade-inofensiva-êxtima” é o “estar” e não o “ser”, ou seja, não é a profundidade enrijecida da metafísica, mas o território flutuante e móvel de uma presença – que se faz presente na marca de um nome próprio, mesmo na ausência da pessoa. O que está em jogo nesse deslocamento também é a rasura da metafísica da ontologia (“o que é?”) pela afirmação da convivialidade (“estar-com”). Isso se confirma no ensaio “Narrarse a sí misma – Versificar a la outra (El caso Molloy-Kamenszain)”, em Una intimidad inofensiva, quando Kamenszain atesta a crucialidade da escrita de Sylvia Molloy em Desarticulaciones como força-motriz da escrita de El eco de mi madre:

Al leer el texto de Molloy, y con el fin de inspirarme, lo primero que hice fue poner la frase “ayer descubrí que me había vuelto menos yo para ella” como epígrafe de un poema que estaba por escribirse. Pero inmediatamente después me encontré volviendo a narrar lo que ella ya había narrado. Escribí:



como mi madre que a veces me trata de usted
y yo me doy vuelta para ver quién soy
la amiga de Sylvia que perdió el voseo
la desconoce hablándole de tú
(Kamenszain, 2016, s/p)

A escrita desse Eco movida pelo eco de outras vozes e de outras escritas inscreve um “estar-com” na medida em que descreve a perda do referente da mãe que leva a filha a se perguntar “Quem sou?” (“y yo me doy vuelta para ver quién soy”). Uma das consequências disso é que o “estar” em contraposição ao “ser” afirma a heterogeneidade do “estar-com” que faz frente tanto à totalidade do “ser tudo” (“ahora sos todo que nos queda ahora sos todo”) quanto ao esvaziamento do ser (“me había vuelto/ aún menos yo para ella”). Ainda sobre esse deslocamento do “ser” para o “estar”, isso se configura em semelhança ao caso das crianças na fase dos “porquês”, que, mais por esperar respostas, insistem nas perguntas como um modo de afirmar a presença: “Aquí, de tanto preguntar quién soy sin dar respuesta, se escucha la extimidad de una voz que parece decir aquí estoy” (Kamenszain, 2016, s/p). Isso encontra eco no caso de Oscar cujas perguntas sem reposta feitas pela irmã (“¿las fotos? ¿la ropa? ¿los juguetes? ¿la partida de nacimiento?”) levam a uma impossibilidade de saber quem era Oscar, levam a um apagamento de sua memória e até mesmo de sua identidade, uma vez que não há indícios nem de sua “partida de nacimiento”. Na sequência dos versos, essas perguntas sem resposta são atravessadas pela emersão de uma voz que diz “estou aqui” (“debajo estoy yo”).

Na partida do pai, outra desmemória passa ao lugar de memória: o caderno esquecido na mão do pai vira letra e epitáfio nas mãos da filha. A morte do pai espelha a morte do irmão, mas também apresenta “su propia partida”, ou sua contrapartida, a “partida de nacimiento”. A certidão de nascimento do irmão, de algum modo, emerge nesse negativo do gesto da irmã que atestou o óbito e deu um ponto de partida ao que parecia não ter volta: “cuando mi hermano murió/ quemaron las fotos rompieron los indicios” (Kamenszain, 2012, p. 112). Aí parece haver o esboço de uma narrativa. Mas, na página seguinte:



y algo me va quedando claro: no puedo narrar
nunca pude me solté rápido de la mano de ella
y entre dos muertes el pretérito ahora me sostiene
es un puente que no se le ve quedó detenido
debajo camina la narradora que no fui arriba
(p. 114)

Esses versos, que antecedem os versos “Oscar Oscar/ debajo estoy yo/ Oscar”, lidos retrospectivamente em conjunto com esses, colocados uns sob o efeito dos outros, provocam um giro na interpretação: quem é a voz que fala “debajo estoy yo”? Quem chama quem? Não seria esse eco um modo de fazer equívoco do referente? Com a localização onde se encontra o irmão morto, poderia ela agora chamá-lo debaixo da ponte onde caminha a narradora? A narradora, debaixo, chamando por Oscar, como se os vivos precisassem mais dos mortos para darem início à narrativa, para serem narradores, do que o contrário. Mas, nessa ponte, um parece dirigir o chamado ao outro. Na sombra de um, o outro. Da mesma forma, os versos “Estás por ahí?/ Mi interlocutor me busca” (p. 82), lidos sob o efeito dos versos posteriores (“Oscar Oscar/ debajo estoy yo/ Oscar”), também provocam um giro na interpretação, uma vez que “debajo estoy yo” pode ser lido como uma resposta que chega páginas depois à pergunta “Estás por ahí?”, parecendo, nesse momento, coincidir com o referencial da voz da autora, mas, sob o efeito do nome de Oscar, isso se desestabiliza. Além disso, a interlocução, além de constituir o processo de escrita do livro, como foi evidenciado no “caso Molloy-Kamenszain”, que mostra que o livro se faz enquanto escrita de uma escuta de ecos, esses versos parecem encenar também o que Kamenszain escreveu, em prosa, sobre a dificuldade dela e de Molloy em lidar com o Alzheimer como “un fenómeno que estaba transformando la interlocución con nuestro ser querido hasta el límite de lo indecible” (Kamenszain, 2016, s/p). A interlocução com a mãe se justapõe à interlocução com outros escritores e, ainda, à interlocução com os leitores. Nesse jogo de “ir embora”, nós, leitores, acompanhamos o vai-e-vem do Fort/Da na procura pela própria “sujeita” Tamara que troca de lugar e se intercambia entre as posições de filha, mãe, irmã, e também de viva e de morta, confundindo-se com o irmão.

Os versos que trazem o nome de Oscar são antecedidos pelo eco da pomba (“¡Ya se fue! ¡Ya se fue!”) que retorna. Mas, agora, ele sopra “un idioma para hablar con los muertos” que reverbera diferencialmente o eco de Pizarnik na epígrafe – “Quién vive, dije. Yo dije quién vive” (Kamenszain, 2012, p. 110) – transformando o verbo “decir” no tempo presente: “digo quién vive, yo digo quién vive” (2012, p. 116). Se a prosa, o romance, a narrativa faz uso do “Había una vez...”, os versos posteriores dizem: “Para eso sirve la poesía si es que sirve para algo/ tacho había una vez escribo ahora o nunca/ ya tengo un nombre lo actualizo in memoriam” (2012, p. 116). Se debaixo caminha a narradora que diria “Había una vez...”, no tempo passado, em cima caminha o nome que assinala o tempo presente do “estou aqui”. O verso “debajo estoy yo” atravessa os nomes, sendo ele mesmo uma ponte entre os dois versos que ecoam três vezes o nome.

Na última estrofe, um verso diz “en presente me siento libre” (Kamenszain, 2012, p. 116). No tempo presente do “estou aqui”, na localização do “debajo estoy yo”, o túmulo é a sombra do lugar da narradora, que se assume como lugar de apelo, de chamado, e também de lugar de passagem (em contraposição ao claustro do cerco do gueto), de ponte, de ponto de encontro entre os vivos e os mortos, entre vida e morte. Algo tem que cair – inclusive, o ideal de “ser tudo” (“ahora sos todo que nos queda ahora sos todo”) – para que se possa emergir de outro modo. Ir até ao chamado “debajo estoy yo” é, de algum modo, ir até essa queda para que então se possa advir um sujeito, subjectus, isto é, que se forma enquanto é lançado, enquanto um lance, e que, por isso, já está assujeitado, lançado, “situado abaixo”. O sopro de um idioma para falar com os mortos se faz, portanto, indissociado de um sopro de vida, uma vez que não há vida sem incidência de morte.

Fazendo um círculo que dá contorno à sepultura, circunscrevendo a morte, Tamara fura o cerco do gueto e inscreve uma aliança que já é em si um velamento. Tradicionalmente, o corte da circuncisão sela uma aliança entre Deus e Abraão e seus descendentes. De algum modo, delinear, pela letra, no meio da página, o círculo da sepultura, reescreve a circuncisão, estabelecendo uma aliança pelo velamento, porém, menos pelo corte do prepúcio e mais pelo hímen, como uma membrana que não revela, mas traz camadas que velam (o sujeito e o lugar enunciativos) e que se fazem como meio, como lugar de passagem. O primeiro poema do livro El Ghetto, dedicado ao pai, Tobías Kamenszain, chama-se “Prepucio”. Os últimos versos dele dizem: “y a mí de qué me sirve la parte del varón/ si no pude salvar del exterminio/ ese himen que vela/ todas las roturas” (Kamenszain, 2012 [2003], p. 20). Como uma membrana que vela, há camadas nesse hímen que talvez sejam as impressões de uma escrita que não está feita, mas sempre por se fazer, sempre por vir – também porque o hímen é isso que está por desaparecer (“no pude salvar del exterminio”).

Agora, na escrita de um nome que traz outros mortos, na delimitação de um círculo que não cerca, mas sim circula, dando movimento a posições que não se fixam, pode-se fazer do corte uma aliança, pode-se finalmente atualizar o passado no presente para que assim seja possível libertar os mortos e os vivos: “en presente me siento libre/ y hasta me parece que a lo mejor/ ... quién te dice... / mañana empiezo una novela” (Kamenszain, 2012, p. 117). Como atentou Paloma Vidal no posfácio à tradução brasileira de Garotas en tiempos suspendidos, em El eco de mi madre, “[o] romance, esse gênero tradicionalmente rememorativo, é associado aqui, pelo contrário, a um presente que libera” (Vidal, 2022, p. 66). Fazer do presente o ponto de encontro entre mortos e vivos atualiza o passado na mobilidade performativa do “estou aqui”, transformando o ponto final da morte em um “punto suspensivo” que se abre como ponto de começo de um romance. Quanto ao “desejo de romance” que perpassa os livros de Kamenszain, Vidal tece a importante consideração:

O livro de poemas que se segue a O eco da minha mãe, La novela de la poesía, leva o romance no título e chega ao fim falando de O romance luminoso [de Mario Levrero], que aparecerá várias vezes no que Tamara escreve a partir de então. Aqui, o romance de Levrero encerra uma reflexão condensada no estribilho “É isso falar da morte?” [...] A poesia é “até que a morte nos separe”, o dom da insistência: “é preciso continuar é preciso continuar”. Mas há algo, sempre, que ficará sem ser dito, sobre a morte, sobre os que não estão, sobre o tempo que passa. “Há coisas que não podem ser narradas”, sentencia Levrero, e decide mudar de assunto, colado ao presente, escrevendo quinhentas páginas de um diário, enquanto o romance luminoso não vem (Vidal, 2022, p. 66)

Sob o eco de Levrero, Kamenszain parece ter encenado esse mesmo movimento nos últimos versos de El eco de mi madre: “Acompañé a mi madre a morir dos veces/ y en estas fechas/ qué más puedo decir?/ Diga lo que diga/ en presente me siento libre/ y hasta me parece que a lo mejor/ ... quién te dice.../ mañana empiezo uma novela” (Kamenszain, 2012, p. 116). Na impossibilidade de narrar determinadas coisas (“Acompañé a mi madre a morir dos veces/ y en estas fechas/ qué más puedo decir?”), cola-se ao presente (“en presente me siento libre”) e, como quem muda de assunto (“y hasta me parece que a lo mejor/ ... quién te dice.../ mañana empiezo uma novela”), esboça o “desejo de romance” que, ao mesmo tempo, é atravessado pelo esboço de um diário ao finalizar o livro com a duração temporal compreendida nas datas: “Septiembre de 2007 – Febrero de 2009” (2012, p. 116). Levrero escreve um diário com potência de verso ao desejar escrever um romance, Kamenszain escreve poesia com potência de diário ao desejar escrever um romance. Se essa obra não fixa a identidade, ela igualmente não fixa os gêneros literários.

Não há um romance que se escreve ancorado no que passou, no que não mais acontece, no tempo passado do “Era uma vez...”, o que há é um “desejo de romance” atravessado pelo porvir, pelo que ainda não aconteceu, pelo que ainda vai começar, por uma promessa de vida, por assim dizer. Esse “desejo de romance” se passa pelo menor, pelo pequeno, pelo inofensivo da anotação cotidiana e despretensiosa do diário íntimo, esvaziando a pretensão da “grande narrativa”, da “grande obra”, de “grandes temas” (Vidal, 2022, p. 66). Esse desejo que se assume explicitamente como uma posição ética e estética em seus últimos livros, Libros Chiquitos e Chicas en tiempos suspendidos, já se anunciava, em El eco de mi madre, como uma tomada de posição que se coloca junto ao infans e, com isso, presta homenagem, de algum modo, ao irmão e também à mãe que, nesse lugar, esteve em posição semelhante ao filho. Tornando-se menor do que Oscar ao trocar de posição com ele (“Oscar Oscar/ debajo estoy yo”), assumir essa voz ainda mais chiquita é um gesto de tornar-se menor não só para estar à altura do irmão, ou para que, nesse momento, ele possa ocupar outra posição que não a do morto, ou, ainda, para encenar o “nada” que se tornou aquela que passou a “ser tudo”, a menina como sombra do filho homem, do macho, do varão (“era yo la hija sombra del varón”), mas é também um gesto de tornar-se menor para estar à altura da vida com a dignidade e a intimidade de quem encara a morte jogando com ela.

Delimitando a fronteira da sepultura no contorno da letra, Tamara Kamenszain faz borda ao gozo mortífero do eco retumbante da mãe que chegava por todos os lugares, inclusive, pela boca do pai: “dirigió un mensaje para mí por boca de mi padre/ ahora sos todo que nos queda ahora sos todo” (Kamenszain, 2012, p. 112). “El libro cortado” escreve o nome de Oscar, coloca-o em presença, retira-o do emudecimento da mãe, do eco do não-saber que a tudo engoliu fazendo retumbar um silêncio, dando a ele um ponto de saber que fez não com que soubéssemos detalhadamente de Oscar, mas que finalmente soubéssemos a história que fez dessa morte “impronunciável” e a re-matou no silêncio do tabu. Os “puntos suspensivos” que ecoavam o não-saber transformaram-se em um ponto de partida que alterou o eco mortífero em uma dissonância configurada em outras modalizações e reverberações, como um “desejo de romance” que se fez não no tempo passado, mas na insistência do tempo presente que se abre no lance do verso, trazendo, nesse poema que se sustenta enquanto um “desejo de romance”, também uma potência de diário. Como observou Paloma Vidal a respeito do comparecimento da data em Kamenszain, essa não possui função meramente informativa, mas opera como refrão que, por sua vez, é entendido não como ligação, mas como corte, como suspensão da narrativa:

Em Uma intimidad inofensiva, Tamara associa o formato datado do diário nesse livro de Levrero à repetição do estribilho na poesia, que, por sua vez, se associa para ela à possibilidade de uma suspensão do que está sendo contado, que devolve a história a quem está lendo, através de “golpes de realidade”. É como se, naqueles momentos em que poderíamos nos deixar levar, o estribilho cortasse nossa onda, e chamasse a atenção para “outra linha de leitura”, como ela repete em O livro dos divãs: “sempre há outra linha de leitura, sempre há outra”. O romance, assim cortado, pode virar poesia ou alguma outra forma menor, um “romancinho”, mesmo que tenha quinhentas páginas (Vidal, 2022, p. 67).

“El libro cortado” pode ser lido sob o efeito dessa última frase de Vidal (“O romance, assim cortado, pode virar poesia ou alguma outra forma menor, um ‘romancinho’”). A narrativa que não pôde ser contada, se torna, então, um livro cortado, que se sustenta como um “desejo de romance”. Desse modo, “El libro cortado” reverbera um eco de El eco de mi madre cuja repetição não é um puro eco sem transmissão, não é uma ressonância, mas uma dissonância em que o eco é rebatido diferencialmente por um corte a partir do qual uma diferença se produz: não o puro eco “sem-razão” do não-saber, mas, dessa hesitação do não-saber sustentado nos “puntos suspensivos”, tem-se o ponto de partida de um romance. Assim, Tamara faz do ponto uma ponte: no ponto de corte do verso, anuncia o ponto de alinhavo de uma prosa, de um romance que estará sempre em ponto de começo.

De algum modo, a filha precisou soltar a mão da mãe para então poder receber as letras do velho caderno esquecido que chegou pela mão do pai, que, por sua vez, a fizeram poder dar a mão para o irmão. Nesse refazimento de laços, dar as mãos ao irmão não equivale a se colar ao passado, mas sim lançar a vida na decisão do “agora ou nunca” que se abre no lance de dados do verso. O verso não seria esse ponto partido da prosa? O ponto partido do romance não seria o ponto de partida da poesia? Ter o outro lado como ponto de partida parece sempre ter sido o procedimento ético e estético de Tamara Kamenszain que é possível encontrar tanto em seus livros de poemas como em seus livros de ensaios. Escrever em verso lançando-se à prosa, ou escrever em prosa lançando-se à potência do verso, ou, ainda, escrever em verso e em prosa fazendo do outro, da voz do outro, o ponto de partida, instaura um “espaço de encontro”, como definiu Adriana Astutti (2012, p. 302), ou uma “intimidade” em que o “lo más íntimo habita fuera, como un cuerpo extraño”, como já foi dito (Kamenszain, 2016, s/p). O verso que se lança à prosa, mas retorna como verso, encena o movimento do vai-e-vem do Fort/Da, o que significa dizer que nunca há um “ir embora” definitivo, mas um “ir” que só existe em sua volta, em seu “vir”, em seu “estou aqui”.

No vai-e-vem das letras, mais precisamente, de trás para frente, como se lê a língua materna congelada da mãe de Tamara, o ídiche (2012, p. 93), a filha tece – na retessitura do eco da mãe – a memória que sua mãe não teceu. A partir da desmemória da mãe, o trabalho de luto da filha se ocupou em dar uma memória ao irmão para que assim fosse possível também enterrar a mãe, estando à altura do corte, e não o recobrindo em sombras de cortinas novas. Não mais presa ao passado martelado pelo ponto que silenciava, agora a filha e irmã pode se mover suspensa nos “puntos suspensivos” das reticências, em que um ponto, depois outro ponto, depois outro ponto, conferem um adiamento do sentido lá onde esse seria apagado. Fazendo do ponto uma ponte, o passo de prosa lança os dados, abrindo espaço para a sorte: “tacho había una vez escribo ahora o nunca/ ya tengo un nombre lo actualizo in memoriam/ y desde el fondo postergado de mi infancia/ dejo la tarea para mañana/ porque la puedo hacer hoy” (2012, p. 116). Ressoando um diálogo com a procrastinação de La novela luminosa de Mario Levrero (Kamenszain, 2016, s/p), o eco do “fondo postergado da infancia” retorna aqui, porém, já deslocado, pois agora os versos seguintes torcem, com humor, a tragédia, ao trazerem a imprevisibilidade cômica dessa postergação como um adiamento infantil da tarefa. Além disso, deixar para amanhã porque pode fazer hoje é uma escolha por adiar, ainda, o fim, deixando o ponto final sempre suspenso.

Referencias

Astutti, A. (2012). Óyeme, mi oíme: Tamara Kamenszain. La novela de la poesía: Poesía reunida. Caracol, 5, 301-305.

Freud, S. (2010). Além do princípio do prazer. En S. Freud (Trad. Paulo César de Souza), Obras Completas (1917-1920) (Vol.14, pp. 120-178). Companhia das Letras.

Heller-Roazen, D. (2010). H y Co. En Ecolalias: sobre o esquecimento das línguas. Tradução Fabio Durão (pp. 29-39). Editora da Unicamp.

Kamenszain, T. (2012). O Gueto / O eco da minha mãe. (Trad. Paloma Vidal y Carlito Azevedo). 7Letras.

Kamenszain, T. (2016). Una intimidad inofensiva: los que escriben con lo que hay. Eterna Cadencia Editora.

Kanzepolsky, A. (2012). As línguas do luto. En T. Kamenszain (Ed.), O eco da minha mãe (pp. 7-13). 7Letras.

Leone, L. (2018). A poesia latino-americana: por uma poética do corpo grávido e da língua láctea. En G. Ribeiro, T. Pinheiro y E. Veras (Eds.), Poesia contemporânea: reconfigurações do sensível (pp. 103-120). Quixote+Do Editoras Associadas.

Vidal, P. (2022). E no entanto e no entanto: o livro das chicas de Tamara. En T. Kamenszain (Ed.), Garotas em tempos suspensos. (Trad. Paloma Vidal) (pp. 59-78). Círculo de Poemas.

Notas

1 Todas as citações do livro El eco de mi madre são provenientes da edição brasileira bilingue, publicada pela Editora 7Letras, cuja tradução para o português foi feita por Paloma Vidal e Carlito Azevedo. Para essa revista argentina, a autora optou por citar os versos no idioma original, em espanhol.

Recepción: 01 Marzo 2023

Aprobación: 15 Mayo 2023

Publicación: 01 Noviembre 2023

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